Descriminalizar não é a solução. Prevenção e tratamento SIM
O Supremo Tribunal Federal deverá votar nos próximos dias uma ação que descriminaliza o consumo de drogas no país. Ali, será analisada a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei Antidrogas e se o consumo permanecerá, ou não, sendo considerado crime.
Professor Doutor Ronaldo Laranjeira
Professor Titular de Psiquiatria da UNIFESP - Escola
Paulista de Medicina
Presidente da SPDM (Associação Paulista para o
Desenvolvimento da Medicina)
O Supremo Tribunal Federal deverá votar nos próximos
dias uma ação que descriminaliza o consumo de drogas
no país. Ali, será analisada a inconstitucionalidade do
artigo 28 da Lei Antidrogas e se o consumo
permanecerá, ou não, sendo considerado crime.
Temos que destacar alguns pontos sobre esse cenário
no Brasil. Um deles é a dificuldade dos diversos níveis
de governo em criar e adotar políticas públicas efetivas
de enfrentamento, prevenção e tratamento contra as
drogas. Como se essa ineficiência não bastasse, ainda
existe um lobby muito bem organizado, que prega que
a melhor resposta para o problema das drogas
(incluindo o tráfico) seria a descriminalização, seguida
da legalização, a começar pela maconha.
Um dos argumentos no qual se baseia o lobby é que
consumo de tabaco e álcool é legalizado, apesar dos
transtornos físicos, mentais e da dependência química
que provocam. Apoiar essa alegação é ignorar
completamente tudo o que aprendemos em relação ao
álcool e ao tabaco, prejudiciais à saúde dos indivíduos e
ao sistema de saúde pública.
Outra é que a decisão sobre usar drogas ou não é um
direito individual, que não afeta o coletivo. Porém,
dados da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
indicam que para cada dependente de drogas, no
âmbito familiar existem mais quatro pessoas afetadas,
em média, de várias maneiras, atingindo cerca de 30
milhões de brasileiros. Não podemos esquecer que a
história está repleta de casos de países que liberaram
drogas ilícitas e sofreram grandes tragédias sociais. A
descriminalização não significa a legalização das drogas,
mas é uma medida que abre precedentes
extremamente preocupantes, especialmente em
termos de saúde pública.
Não existe hoje um exemplo de país que, ao
descriminalizar o consumo de drogas, tenha obtido
resultados positivos com a medida, como diminuir o
tráfico de entorpecentes. Ao contrário, evidências de
entidades independentes, como o European
Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction
(EMCDDA), apontam que o tráfico em locais como
Portugal (que descriminalizou o consumo de drogas em
2001) aumentou, assim como o consumo de diversos
entorpecentes e mortes por overdose. Devido a esse e
outros casos, a constatação é que a medida não é a
solução para este grave problema.
Mas o que fazer? Os defensores da descriminalização e
da legalização acreditam que a simples mudança na lei
seria a solução. Já o outro lado defende o caminho
punitivo, penal, crendo que a repressão é o rumo
correto. Antes de qualquer coisa, é fundamental acabar
de vez com a polarização e o radicalismo impregnados
no debate sobre qual é a melhor política a ser adotada
para o controle das drogas ilícitas. Só eliminar as penas
ou endurecê-las jamais bastará para encontrarmos uma
solução para a epidemia do uso de drogas.
O lobby da legalização não discute os bons exemplos de
país que mantiveram controles sociais rígidos sobre as
drogas e hoje são os verdadeiros exemplos de sucesso
que o Brasil deveria seguir: Japão, Singapura, Suécia.
Ninguém poderia falar que nesses países as políticas de
drogas não funcionam: existem firme determinacão do
governo e da sociedade em enfrentar as drogas,
existem políticas públicas de prevenção e tratamento e
também um sistema jurídico aliado do sistema de
saúde para ajudar o usuário a não se transformar num
traficante.
Precisamos considerar abordagens humanas e realistas,
que se baseiem nas melhores evidências científicas
disponíveis. E temos exemplos concretos disso - a
chamada Justiça Terapêutica é um deles.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde
(OMS), existem hoje no mundo aproximadamente 4
milhões de pessoas em tratamento contra o uso e
abuso de drogas. Destes, 2,5 milhões estão nos
Estados Unidos, onde a chamada Justiça Terapêutica é
amplamente aplicada.
Diversas nações estão seguindo o exemplo dos norteamericanos
e trilhando essa “terceira via” em relação
ao controle das drogas. A abordagem tem ênfase na
prevenção e no tratamento, baseada em evidências
científicas.
Nos Estados Unidos, o conceito de justiça terapêutica
surgiu fortemente no final dos anos 80, com as drug
courts, ou cortes de drogas. O principal objetivo dessa
medida é reduzir o consumo, o encarceramento (e os
custos decorrentes dele), além da reincidência do
usuário, tanto criminal quanto de uso. Dentro dessa
estratégia, não se propõe a descriminalização e sim a
suspensão do processo judicial, mediante certas
condições. O usuário pode optar em passar por um
tratamento contra a dependência química, em vez de
cumprir uma pena por portar drogas ilegais.
As cortes de drogas apresentaram grande sucesso, se
espalhando rapidamente no país. Segundo o Instituto
Nacional de Justiça norte-americano, hoje existem mais
de 3.400, algumas destinadas para adultos, outras para
adolescentes, motoristas embriagados, famílias e
veteranos de guerra, por exemplo.
No Brasil, a lei 11.343/06 já flexibilizou a legislação,
despenalizando o usuário e evitando que ele seja
preso por portar drogas para consumo próprio.
Inclusive, o parágrafo 7 do artigo 28 desta lei federal
prevê que “O juiz determinará ao Poder Público que
coloque à disposição do infrator, gratuitamente,
estabelecimento de saúde, preferencialmente
ambulatorial, para tratamento especializado”. Porém,
esse encaminhamento acontece na prática? Não. E
está aí o grande “X” da questão.
Encarcerar o usuário realmente não é a solução –
oferecer a ele e à população em geral prevenção e
tratamento sim. Para isso, a união entre o sistema
judiciário e de saúde é crucial. E no Brasil já é possível
aplicar a Justiça Terapêutica, sem alterar qualquer
legislação. A lei dos Juizados Especiais Criminais
possibilita acordos do tipo, propostos pelos Promotores
de Justiça.
As primeiras iniciativas nesse sentido em terras
brasileiras foram registradas no Rio Grande do Sul, na
década de 2000, sendo seguidas em outras regiões,
inclusive na cidade de São Paulo, como no Fórum de
Santana. A medida é aplicada após uma criteriosa
seleção de casos, para os quais são aplicados
programas rigorosos de tratamento, definidos após
audiências individuais com os usuários, que são
monitorados frequentemente para acompanhar a
evolução de sua reabilitação.
O que precisamos é ampliar essa interface entre a
justiça e a saúde no país, não incentivando a prisão e
sim o auxílio de uma equipe multidisciplinar, que conte
não somente com juízes e promotores, mas também
com profissionais de saúde. Esta é a alternativa - uma
política antidrogas moderna, humana e baseada em
evidências científicas, com foco em prevenção e
tratamento.
A simples descriminalização das drogas agravará um
quadro de problemas sociais e de saúde pública no
Brasil, onde o consumo vem aumentando
consideravelmente nos últimos anos, afetando não
apenas os usuários, mas também suas famílias, como
apontado anteriormente. É inquestionável que algo
deve ser feito para alterar essa situação, porém, temos
que tomar cuidado com as medidas propostas nesse
momento. Precisamos nos questionar: a
descriminalização é a resposta? Será eficiente? Tanto
em termos de enfrentamento, quanto de educação,
prevenção e tratamento?
Nosso país é o único do mundo que faz fronteira com
basicamente todos os produtores de coca, por
exemplo. Assim, temos que ser mais rigorosos no
controle desses pontos, para diminuir a circulação e
oferta de drogas. Aderir à facilidade de acesso ou
dificultar a ação de combate ao tráfico apenas agravará
o quadro, facilitando até o aumento da disponibilidade
e do consumo.
Fora isso, precisamos educar e esclarecer a população
sobre o uso de substâncias psicoativas, além de
proporcionar atendimento de qualidade.
Antes de qualquer mudança na legislação, diversas
ações são necessárias, como incluir no currículo escolar
orientações sobre prevenção ao uso de substâncias,
violência, gravidez precoce, etc. É importante também
todas as famílias, que tiverem um dos seus membros
usando drogas, receberem orientações sobre como
lidar com a situação, além de ser proporcionado ao
usuário o tratamento necessário para drogadição.
O conjunto dessas medidas criará uma mudança social
e cultural no Brasil. Somente quando essas ações
estiverem totalmente consolidadas é que podemos
pensar em mudanças na lei brasileira sobre drogas.